Há muito tempo que tinha alguma
vontade de viajar devagar. A maioria dos viajantes faz uma apologia desta forma
de viagem e eu raramente tenho oportunidade de passar mais de 2 ou 3
dias num lugar, a maioria das vezes, por opção.
Mas, em Ilulissat o destino
pregou-me uma partida e acabei por passar 7 dias na cidade ou nas suas
imediações. Viajar na Gronelândia não é fácil, especialmente devido ao clima e
às adversidades do tempo que condicionam as ligações. Nenhuma localidade
gronelandesa tem ligação por estrada, o que significa que sempre que se quer ir
a qualquer lado é necessário apanhar um barco, um helicóptero ou um avião. Isto
torna as viagens morosas, caras e difíceis.
Já sabia que os planos feitos em
Portugal, meses antes, não passavam de planos e que o tempo na Gronelândia é
que define para onde se vai e quando se vai. Já tinha experimentado o poder do
mar “bravo” durante a viagem de barco nos fiordes ocidentais da Gronelândia. Já
sabia que a natureza é que governa este território.
Depois de conhecer Ilulissat e de
fazer alguns
treks no fiorde gelado, apanhei um barco rumo à ilha de Disko.
Eram 7 horas da manhã e a cidade parecia deserta. Chovia intensamente e a noite
tinha sido gelada e ventosa. Enquanto
caminhava em direcção ao porto, o vento parecia cortar-me a pele do rosto,
impossível de cobrir e proteger. Bastaram 15 minutos de caminhada para chegar
completamente encharcada ao porto, embora a mochila estivesse protegida e seca.
Embarquei rumo a Qeqertarssuaq, o único povoado da ilha de Disko.
O barco saí do porto, entrando na
baía repleta de
icebergs. Os
icebergs são grandes mas quase não se vêem tal é
intensidade do nevoeiro. O barco navega lentamente. É uma das ligações lentas,
sendo que o trajecto para fazer cerca de 80 km está programado demorar 4 horas.
Os primeiros minutos são pacíficos, ainda navegamos na baía. Mas, quando se
perde a protecção do fiorde e dos
icebergs, o mar aberto mostra as suas garras.
As ondas começam a crescer, o barco abana lateralmente e depois de frente.
Ouvem-se os primeiros vómitos, gemidos. Nunca mais terminaram. O mar não está
para brincadeiras, especialmente num barco tão pequeno.
Eu, não falto à chamada. Não
chegou a demorar mais de meia-hora para também eu me juntar ao “mar” de vítimas
do estado do mar. Para quem sabe o que é enjoar num barco, o pior não é
vomitar. A pior agonia é quando já não se tem nada para vomitar e os vómitos
continuam a subir, o estômago está completamente destruído, a cabeça parece
latejar e os olhos e nariz enchem-se de água. Nem eu sabia que “mareava” tanto!
Aguentei-me duas horas naquele
estado. Entreguei o meu “presente” ao Rui (que se aguenta muito bem no mar), que o levou a custo até à
casa-de-banho. Pelo caminho, o barco continua a balançar sem parar. O Rui é
empurrado contra uma das paredes e o meu “presente” espalha-se no convés. Não
se agoura nada de bom. Algumas malas ficaram sujas e o Rui ainda tem força para
limpar algum do “prejuízo”. A viagem não está a ser fácil. Mas, já só faltam
duas horas. Há que ser optimista. Isto é a Gronelândia. Eu sabia que não ia ser
fácil.
E de repente o barco pára.
- Porque parou o barco, Rui?
- Parece que voltamos para trás.
- Por causa do estado do mar?
- Não sei, vou tentar saber.
Passados alguns minutos, volta
com a resposta. Duas raparigas estão com intoxicação alimentar e o barco
aparentemente voltou para trás para as deixar em Ilulissat. Afinal não andamos
duas horas em direcção à ilha de Disko, mas sim uma hora para cada lado. Já
estamos de volta a Ilulissat. As raparigas passam para um barco mais pequeno.
Olho pela janela do barco. Não acredito que estou de volta ao porto. Daqui vejo
a cidade toda e voltei a estar rodeada pelos
icebergs.
- O barco vai recomeçar a sua
marcha. Serão mais 4 horas até à ilha. Diz um rapaz sentado atrás de mim.
NÃO!!! Isto não me pode estar
acontecer!! Duas chinesas devem ter pensado o mesmo porque pegaram nas malas e
mudaram-se para o barco pequeno que vai de volta a Ilulissat. Uma jovem inuit
grávida e que viajava com uma criança pequena faz exactamente o mesmo.
- Rui, não aguento mais 4 horas
disto. O mar está mau demais.
Perceber naquele momento que duas
horas de viagem tenebrosas tinham sido em vão foi como levar um murro no
estômago. E, o meu estômago já estava em bastante mau estado. Convenci o Rui a
desistir de irmos para a ilha. O nosso objectivo era fazer trekking e subir aos
glaciares. Com aquele tempo seria uma tortura. Para quê sujeitar-me a mais 4
horas de barco? E, ainda haveria o regresso a Ilulissat três dias depois.
- Ok, vamos voltar também, anuiu
o Rui.
Não sei se fiquei satisfeita ou
frustrada. Foi um misto de emoções que ainda agora não percebo. Fiquei aliviada
por não ter sofrido mais 4 horas; fiquei satisfeita por ter chegado ao hostel,
tomado banho, mudado de roupa, vestido roupa seca e ter ido dormir novamente.
Mas, fiquei muito frustrada por ter deixado para trás a ilha de Disko e por ter
defraudado os meus planos.
Com estas alterações, acabei por
passar mais de uma semana na cidade de Ilulissat. Acabei por poder fazer aquilo
que se chama “viajar devagar”. Mas, confesso que não gostei. O tempo não
ajudou. Os dias começavam e acabavam com chuva e sempre que havia uma pequena
trégua, vestia o meu casaco, colocava o gorro e saía. Juntava-me assim a mais
uma dezena de gronelandeses que tiveram a mesma ideia.
Sim, é verdade que tive tempo
para conhecer melhor os hábitos locais e conversar com as pessoas, muitas
viajantes do hostel, outras inuits. Mas também é verdade que quando dei por mim
já eu agia como eles. Também eu comecei a dirigir-me ao porto nas horas de
chegada e partida dos barcos para ver caras novas. Também eu comecei a reparar
no tamanho das poças de água na estrada e a estabelecer comparação com os dias
anteriores. Quando dei por mim, também já passeava pelas mesmas ruas da cidade
aguardando que algo tivesse mudado em poucas horas. Mas, aqui na Gronelândia,
senti-me presa. Presa era mesmo a palavra certa. Estava presa e não podia sair
de Ilulissat. Não estava a sentir que viajasse devagar. Estava a sentir-me
parada. Não gosto de sentir-me parada. Gosto de ter coisas para fazer, coisas
para ver. Gosto de viajar em movimento. Acho que o descobri aqui.


Há imensas formas de viajar,
assim como há imensos tipos de pessoas. Viajar é algo muito pessoal e que se
ajusta a cada um de nós como se de uma segunda pele se tratasse. Cada um veste
a pele que melhor lhe assenta e vai ajustando-a conforme se sente mais
confortável. Ao longo dos tempos tenho viajado sempre em movimento e nunca
tinha sentido que fiquei “presa” num lugar. É verdade que já houve imensos
lugares onde me apeteceu ficar mais tempo, onde senti que não tive tempo de ver
e conhecer o que queria. Mas, descobri agora que isso é extremamente importante
para mim. Isso sempre deixou em mim um desejo muito grande de voltar. Eu
preciso desse desejo e dessa adrenalina!