É mais ou menos sabido pela
sociedade ocidental que a forma como o Islão trata as suas mulheres não é a
melhor. No entanto, apesar de haver sociedades islâmicas em que a mulher já tem
um papel importante e reconhecido na sociedade, há outras sociedades com
tradições ancestrais muito enraizadas e onde o papel da mulher na sociedade é,
no mínimo, estranho aos nossos olhos.

Os valores culturais entre a
sociedade ocidental e a egípcia, especialmente a dos oásis, estão em patamares opostos.
Aqui, uma mulher que não se cubra, incluindo a cabeça, é vista como tendo uma
atitude provocatória. Seria o equivalente a percorrer as ruas das nossas
cidades em roupa interior. Como tal, a maioria dos homens egípcios encaram a
forma descontraída e desportiva de como as mulheres ocidentais se vestem como
um convite sexual. Qualquer mulher ocidental que percorra as ruas sozinha
arrisca-se, no mínimo, a ser assediada sexualmente e mesmo a ser apalpada. Como
tal, não é fácil para uma mulher sozinha viajar no Egipto. São vários e
mirabolantes os testemunhos das mulheres que sofrem diversas formas de assédio
por terras faraónicas. As viagens de autocarro resumem-se a horas intermináveis
em que os homens as apalpam e elas não se podem queixar. Queixar a quem? Para
todos os homens, foram elas que provocaram. Para as outras mulheres, é uma
bênção as estrangeiras estarem aqui. Sentem-se menos pressionadas pelos homens
e, por muita compaixão que sintam, nunca se atreveriam a dizer algo. Apesar de
intolerável aos olhos do ocidente, estes comportamentos por parte dos homens
está inserido num legado cultural centenário onde a mulher continua a ser uma
propriedade (primeiro do pai e depois do marido).


Se o tipo de comportamento
"normal" numa sociedade como a egípcia é assim, desde os locais mais
turísticos até aos mais remotos, nestes últimos as coisas podem atingir
proporções muito mais graves. Nos dias que passamos nos oásis
do deserto, pudemos aperceber-nos de práticas que aqui ocorrem com as mulheres
e que muito nos chocam. Enquanto estávamos em Siwa reparamos que durante o dia
as mulheres raramente saem a rua e quando o fazem andam sempre acompanhadas de
um homem, seja ele filho, marido ou pai. É muito comum vermos mulheres a serem
transportadas em carroças conduzidas por crianças (do sexo masculino) com cerca
de 4 - 5 anos. Todas elas vestem roupas largas, tapam a cara de preto e não
conseguimos ver nenhuma parte do seu corpo. Não sabemos se são jovens ou
velhas, se são bonitas ou feias... Têm, inclusive as mãos cobertas por luvas.
No entanto, o que mais choca é a sua atitude de completa submissão. Olham para
o chão. Viram a cara tapada para onde não há ninguém e nunca falam. E
incomodativo ver a sua situação.

Siwa é conhecida por ser uma
sociedade muito fechada com tradições muito firmes, no entanto, quando chegamos
a Baharyia apercebemo-nos que ainda havia muito pior. Na noite em que estávamos
à espera do autocarro para Daklha apercebi-me de uma mulher com a cara
completamente desfigurada. Quando entramos no autocarro vi outra. Até aqui o
meu subconsciente nada me disse mas no fundo achei estranho.


Uma vez dentro do autocarro
tivemos outro problema. A viagem era nocturna e mal os homens me viram entrar
começaram a dividir-se individualmente pelos bancos para que eu fosse obrigada
a sentar-me ao lado de um deles. Senti-me como uma presa a ser atirada a um
bando de leões. Olhei para o Rui e disse-lhe que nunca me sentaria ao lado de
nenhum deles. Ou íamos os dois no mesmo banco ou os dois sentados no chão. O
Rui discutiu com o homem do autocarro e nada se parecia resolver. Nenhum homem
estava disposto a mudar de lugar. De repente olho e vejo todas as mulheres a
olharem para fora como que evitando o contacto visual comigo. No entanto, uma
delas olha-me nos olhos e faz sinal para eu me submeter. Quando olhei com
atenção vi o seu rosto exposto à luz da lua e completamente deformado. O meu
corpo gelou. Gelei de cima a baixo. Naquele momento vi claramente aquilo que
tantas vezes tinha pesquisado na internet - os crimes de honra. Não é normal
haver três mulheres com o rosto completamente queimado e desfigurado num
autocarro nocturno. Lembrei-me dos livros que li (inclusive o Queimada Viva) e
das fotografias que vi na internet. Fiquei petrificada. Estas mulheres sim, são
obrigadas o mostrar o rosto. São exemplos para todas as outras do que a
desobediência ao homem pode provocar.

Entretanto o Rui conseguiu lugar
para nós, lado a lado. Encaixo-me num cantinho do autocarro. Cubro-me toda.
Estão seguramente mais de 40 graus e eu visto mais uma camisola de manga
comprida e enrolo-me com o lenço. Tapo-me com a mochila. Todos os homens olham
para mim com um ar predador. A viagem demora a noite toda e eu não consigo
pregar o olho enquanto cruzamos o deserto a caminho de mais um oásis.

Durante a viagem lembro uma
conversa do dono do hotel. As raparigas de Baharyia são vítimas de Mutilação
Genital Feminina aos 9 anos. A excisão deixa-as sem qualquer tipo de prazer
sexual para o resto da vida. Esta prática, ao que parece está muito enraizada
por aqui e os homens utilizam a frigidez das suas mulheres como desculpa para
assediarem as mulheres estrangeiras. Que mundo estranho este em que vivemos!
Com toda a diversidade cultural existente por vezes encaramos situações que aos
nossos olhos são, claramente, crime, mas aos olhos de outra sociedade são
manifestações culturais. A mulher é uma propriedade. Não posso esquecer isso. É
isso que regula a vida por aqui e é isso que dita os actos da população. O que
aos meus olhos é estranho, nojento e repugnante, não passam de raízes
culturais.

Para trás deixei ficar um bocado
do meu medo. Na paragem do autocarro ficou Julia, a canadiana que viaja
sozinha, e espera o autocarro da uma e meia da manhã para o Cairo. Tem vinte e
um anos. Foi apalpada na viagem do Cairo para Baharyia, foi vitima de assédios
sexuais constantes por aqui e, o dono do hotel onde ficamos chegou inclusive a
entrar-lhe no quarto e a fechar a porta. Este mesmo dono montou mil e um
esquemas para que ela não tivesse grande mobilidade e tenta persegui-la. Julia
espera sentada com o filho do dono do hotel pelo autocarro que só chegará daqui
por uma ou duas horas. Quando saí apertei-lhe a mão e disse-lhe "stay
safe, please". Até agora ainda não soube nada dela. Espero que me responda
ao email que já lhe enviei há dois dias. Sinto o coração angustiado.