De uma certa forma, no
subconsciente das nossas mentes, a subida a um cume foi sempre encarada como o
culminar das nossas férias. Durante estes dois meses de viagem percorremos
grande parte da cordilheira dos Andes, subindo e descendo montanhas, a pé ou de
carro, desde os Andes desérticos da fronteira Chile-Bolivia, passando pelos
Andes gelados das cordilheiras peruanas, até aos Andes vulcânicos equatorianos.
E é aqui, neste país semeado de vulcões adormecidos e outros bem acordados que
se situa a montanha que escolhemos para tentar o cume. Aquele que é considerado
o vulcão activo mais alto do mundo - o Cotopaxi.Apesar de o guia da Lonely
Planet dizer que a subida não é para principiantes, também é verdade que esta não
era descrita como sendo técnica. Assim sendo, confiamos que seria uma subida
dita "de progressão", não havendo necessidade de escalada (em rocha
ou gelo) estando assim ao alcance de qualquer pessoa com boa condição física e
aclimatação. No final desta aventura descobrimos que não e bem assim!

Contratamos uma agência em
Latacunga, a Volcan Route Expeditions, para termos o necessário apoio em termos
de material e de um guia qualificado. Tanto em termos de um, como de outro,
fomos muito bem servidos. O nosso guia, Julian, é uma pessoa muito simpática, e
um profissional excelente e com muita experiência. Basta dizer que no seu
currículo tem aproximadamente 600 subidas ao cume do Cotopaxi! Tenho a certeza
que ele foi uma peça fundamental do nosso sucesso.

Devo confessar que estou a
escrever o resto deste texto duas semanas depois de ter subido ao cume do
Cotopaxi. Desde aquele dia, com a respiração ofegante e pernas cambaleantes a
5897m de altitude, até hoje, sentado na nossa sala na calma vila de Celorico de
Basto, já passei pela metrópole de Quito, uma visita à metade do mundo, três
viagens de avião com uma breve passagem pelos aeroportos de Miami e Madrid, o
reencontro com família e amigos, a apresentação na escola, as reuniões de
início do ano lectivo, as idas a Lisboa, o concerto de Madonna, o início das
aulas… Terei deixado passar demasiado tempo para pôr “preto no branco” aquilo
que senti naquele dia? Será que estes dias alteraram os meus sentimentos, a
minha percepção em relação a esta nossa última grande aventura na América do
Sul? Talvez… Hoje, de que me lembro mais? Vejo-me de crampons e piolet
agarrados à neve, fazendo o esforço por subir aquela parede com inclinação de
70°, o último obstáculo rumo ao cume. Parei várias vezes, exausto. Já estava a percorrer
os glaciares há quase seis horas, cinco das quais em escuridão. Saí do refúgio
com muitos receios, sendo um dos maiores o caminhar na escuridão, mas
rapidamente percebi que ela era um dos meus melhores aliados. Nela, não se vêm
as inclinações acentuadas das vertentes, as enormes distâncias a percorrer, as
crevasses a atravessar, o abismo branco que está para baixo…

Só caminhamos,
seguindo o guia. Um pé atrás do outro. Piolet, bastão, passo, passo… Por vezes,
o declive é tanto que o pé do lado da vertente é sujeito a um esforço enorme.
Muda-se a posição, caminha-se de lado. Não está frio. Transpiro muito. Paramos
de vez em quando. Não me sinto demasiado cansado. Na realidade, nem me sento.
Olho para baixo. Uma rampa branca até onde a luz do frontal alcança e depois…
vazio. A neve do glaciar também se ressente desta noite pouco gelada e por
vezes afundamo-nos a caminhar. Começa a clarear. Um grupo segue à nossa frente.
A inclinação começa novamente a aumentar. Seguimos numa vertente à nossa
direita, com o piolet nela enterrado e os pés seguindo o trilho estreito.
Dobramos a vertente e… ainda falta tanto! E ainda temos de subir esta parede.
Cravar os crampons e a ponta do piolet na neve e subir. Enterro-me na neve,
sinto-me sem forças. Estou exausto. Penso: “Não posso mais, não posso mais!”
Paro, respiro, olho para a parede à minha frente, para o guia e para a Carla,
acima de mim. Já falta pouco… Tenho de continuar! Afinal ainda tenho forças…
Chegamos à rampa final. A inclinação é mais suave. O grupo à nossa frente já
vem a descer. Quer dizer que já estamos mesmo perto! Felicitamo-nos mutuamente.
E chegamos. Olho em redor. Nada mais alto. De um lado, vê-se a montanha, as
nuvens abaixo, outras montanhas ao longe… Do outro, a cratera, quase
completamente envolta em neblina. Só lhe vejo um pouco do rebordo. O guia
abraça-nos e dá-nos os parabéns. Mas não tenho ânimo para tirar fotos. Digo ao
guia que isto de subir montanhas não é para mim mas ele responde-me que, quando
era novo, também dizia isso mas depois regressava sempre. Bebo água e tento dar
uma trinca no chocolate que trazia na mochila, agora congelado. Só tenho um
pensamento na cabeça: tenho de descer por onde subi.

E assim foi. Desta vez, à
frente. Tal como na subida, algumas instruções rápidas do guia, uns passos
iniciais hesitantes, e depois… Cada um por si. Tive receio, no início. Descer
de costas a parede que tinha subido há pouco tempo. Descer a vertente
inclinada, agora à nossa esquerda. Piolet agora na mão esquerda, mão direita na
neve. Um pé de cada vez, devagar. Não se olha para baixo. Só para os pés, para
as mãos, para a neve. E passamos. Senti-me mais confiante. Caminhava com mais
destreza. Parava para admirar a paisagem. Tirei algumas fotos. Mas o pensamento
não tinha passado; tinha de descer. A corda dava esticões; ia depressa demais.
Até chegar ao refúgio, olhei poucas vezes para trás. Como tinha subido aquilo
tudo? Se tivesse aquela visão ao subir, não o teria feito. Ou teria?...

Antes
de subir, pedi à montanha pela minha segurança. E quando cheguei, agradeci ao
Cotopaxi pelo cume, mas principalmente pela visita segura. E agora? Sinto
saudades. Estou feliz por o ter feito, por a montanha me ter deixado ir lá
cima, por ter conseguido corresponder. E, por estranho que pareça, e em
contraste com o que senti no cume, uma parte de mim quer regressar lá, à
montanha, e, quem sabe, talvez outro cume.